26/02/2014

A Canção

"Não sei iniciar esse relato. Queria uma primeira frase histórica, épica, definitiva, que fizesse justiça à mudança global que aconteceu, tivesse o impacto que ela teve. Mas estou sentado em frente ao computador há horas e tudo que sei é que é preciso registrar o que vivemos. Para gerações futuras saberem que nem sempre as coisas foram tão boas como estão se tornando e, tudo indica, serão daqui para a frente. Mas preciso de alguma frase, suponho.

Tudo começou com uma canção.


Acredito que essa é tão boa quanto qualquer outra, e de qualquer forma foi exatamente assim. Algo tão banal. Em uma época de grande mídia, música pop, grandiosas campanhas publicitárias e ídolos (e músicas) artificiais, foi uma única canção, de autor desconhecido, que se espalhou como fogo, como eletricidade, contagiando a todos, um por um - e às vezes multidões de uma só vez. Diferente de alguns hinos como Imagine, The Times They are a Changin, Power to the People e We Shall Overcome, não tinha tom político. Não precisava.

Era mais que uma canção. Teve mil intérpretes em todas as línguas e contagiou cidades, estados e países inteiros com velocidade impressionante. A internet ajudou, viralizando a primeira interpretação da música (onde o autor do vídeo já admitia não ser o compositor, apenas tê-la ouvido em um bar certa vez e ela não ter saído de sua cabeça desde então). E era o que bastava: cada um que a ouvia, ficava com sua melodia na cabeça de imediato e de maneira irremediável. Suas notas eram mais que notas: eram a pura expressão da alegria, da felicidade. Não havia alternativa a não ser cantar junto, dançar e sentir-se bem. Por completo. E principalmente querer dividir essa alegria com os outros. Porque a canção crescia dentro de cada um de nós até se tornar grande demais para somente um indivíduo, explodindo em canção-alegria para as próximas vítimas a serem contagiadas.


E essa sensação foi espalhando pelo mundo, pessoa a pessoa, cidade a cidade. Torcedores "rivais" abraçaram-se, compreendendo finalmente que esporte é diversão e competição não é guerra. Organizações radicais deixaram de existir, os "intocáveis" na Índia foram acolhidos em residências ricas e calorosamente abraçados, em público, por todos. Revistas anunciaram o fim do uso de Photoshop, tabloides e programas policiais passaram a mostrar apenas notícias positivas e alegres. Isso nos primeiros dois dias. Jornais notificavam o "maior fenômeno cultural da história da humanidade" e, ao tocar a música, tornavam-se eles mesmo multiplicadores. Não levou uma semana para atingir quase o mundo inteiro. Racismo, machismo, homofobia, xenofobia - e na verdade todo tipo de preconceito - deixaram instantaneamente de existir nos lugares aonde a canção chegou. Não havia mais ódio, não havia mais egoísmo.

Mas não foi tão fácil, é claro. Em algumas regiões tentaram impedir a chegada da canção. Baniram a internet, a TV e o rádio. Fecharam as fronteiras, com seus exércitos instruídos a proteger a qualquer custo a mentira de "tradição, história e cultura" de seu povo. Houve tiros, protestos, embates e mortes. Mas como parar uma canção? Como impedir as pessoas de passarem-na boca a boca, no escuro, em um porão, ao redor de uma fogueira? Ninguém encontrou a resposta, e tanto na fronteira quanto dentro dela as pessoas acabavam por ouvir a melodia, e cantaram-na a plenos pulmões. Os soldados enviados para punir os "subversivos" acabavam por ouvi-la, jogando suas armas ao chão e juntando-se a eles em coro, dança e alegria, percebendo sermos todos iguais, que deveríamos estar lado a lado, não em confronto. Assim, não sem contratempos e bem aos trancos e barrancos, mesmo nesses lugares a canção espalhou-se e contagiou a todos. E o planeta, finalmente, se tornou um, com todos trabalhando juntos em criar comunidades colaborativas e igualitárias, todos contribuindo na construção, melhoria e conservação de tudo, em harmonia. E cantando, e dançando, e vivendo. Que época de ouro.

E tudo começou com uma canção."

Nota: eu realmente acredito que temos, em cada um de nós, uma canção com o potencial de promover essa mudança, de viver e cantar em nossas almas. Precisamos aprender a ouvi-la.

Nota 2: lendo esse conto, você chegou a pensar em alguma música específica? Caso afirmativo, deixa nos comentários - eu gostaria de conhecer!
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