08/04/2015

Justiça*

Foi dois dias atrás. Entramos no restaurante às 21:00. Um dos lugares mais elegantes e tradicionais da cidade, de decoração extremamente sóbria e limpa, com cada coisa em seu lugar como estivera há décadas. Abrimos o cardápio forrado em couro com detalhes em dourado e com o nome do restaurante em alto relevo, e escolhemos um excelente vinho. A noite estava perfeita, com poucas nuvens e a lua iluminando o salão externo. Mal havíamos recebido o prato principal quando aconteceu: entrou no restaurante, vestido com um terno preto e empunhando uma arma que não reconheci, um bandido que fugia da polícia. Outro entrou na sequência. Haviam roubado um banco no centro à tarde (entrou um terceiro – meu Deus, quantos haviam?) e a caça se estendeu por toda a tarde e noite, com os bandidos tentando fugir entre as ruas e prédios. A polícia se aproximava na perseguição.

Eles fugiam para o fundo do restaurante e a polícia entrou atirando. O barulho das armas é muito mais alto e seco do que imaginamos pelos filmes. Os bandidos revidaram.

Os clientes jogavam-se ao chão, em pânico. Uma senhora loira agarrou a bolsa e levou um tiro da polícia. “Ela buscava uma arma”, declarou depois o Cabo Lopes, que liderava a perseguição. Ela morreu no local. Incrível como as pessoas que menos suspeitamos podem ser criminosas violentas. A seguir os bandidos tentaram pegar reféns, agarrando um jovem executivo que jantava com sua noiva – também imediatamente baleado pela polícia. “Ele estava vestido igual aos bandidos, era bandido igual”. Um perfil de twitter de apoio à polícia soltou uma piada, dizendo que o rapaz trabalhava em um banco, portanto roubava muito mais gente que os bandidos e mereceu levar bala mesmo “gente honesta não leva tiro”, terminava o twit. É isso aí.

Outros clientes, que deram azar de estar no caminho do fogo cruzado, foram baleados também e felizmente ninguém mais morreu, apesar de um homem estar em coma. Cena comum, em uma ação assim não tem jeito e algumas pessoas saem machucadas na tentativa de salvar vidas. A polícia só está fazendo a parte dela, afinal. Quando mataram os três bandidos e a coisa acalmou, todos os clientes levantaram e aplaudiram efusivamente a ação dos policiais, que arriscam a vida todos os dias por nós. Tolice nossa: claro que em uma situação de perigo os coitados dos policiais iam interpretar aquele monte de gente fazendo barulho como ameaça – com cassetetes e spray de pimenta (elogiável o preparo de nossos homens da lei), dispersaram a multidão e acabaram com o tumulto. Vida que segue, os garçons fizeram um excelente trabalho de arrumar as mesas e servir os pratos novamente aos clientes, inclusive os quatro baleados que aguardavam a ambulância – que chegou muito rápido graças ao excelente plano de saúde que possuem. Que diferença do horrível serviço público, que só enviou o legista depois de quase 8 horas, fiquei sabendo. Os corpos lado a lado ali, porcamente cobertos com uma toalha de mesa importada do restaurante, os cabelos loiros da senhora aparecendo, espalhados pelo chão. Pfff, criminosos não merecem nada melhor que isso também.

Voltamos a jantar (felizmente nossa garrafa de vinho escapou intacta dos tiros) e fomos embora, discutindo o alívio em ver que estão para abaixar a maioridade penal – nenhum dos criminosos ali era menor de idade, tudo bem, mas nós pessoas de bem sabemos o quanto é importante ser mais duro com criminosos e quanto mais cedo melhor, afinal é só não ser bandido para não ser agredido pela polícia... Opa, acabei de receber uma mensagem. Aquele cliente que ficou em coma acabou de morrer. Era pai de dois filhos adolescentes, empresário como eu, cristão também. Inclusive votávamos na mesma seção, acho que o conhecia. Votamos nos mesmos caras, até brincamos que iríamos salvar o Brasil. Mas... Não, ele tem que ter feito algo errado, não é?

Por que ele levaria um tiro?

Seria tão...... 

Injusto.


*o texto é um conto de ficção, obviamente todos os nomes foram inventados e não conheço ou ouvi falar de nenhum "Cabo Lopes" e nenhum caso parecido com esse. Mas é interessante inverter a realidade de violência que é comum na periferia, como vimos com o garoto Eduardo de Jesus no Morro do Alemão recentemente, e pensar na parcela mais abastada no lugar.

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