Acordou sem perceber que havia desperto. Seu olhar perdido no teto contava as rachaduras e imaginava se faltaria muito para que desabasse, simplesmente, acabando assim com a melancolia de cada manhã. Mas o teto não desabava, e o despertador esgoelava-se há vinte e cinco minutos, incansável, tentando cumprir sua tarefa diária e cada vez mais árdua de tirar seu dono da cama.
Então não teve escolha, a não ser levantar: estava, sem dúvida, acordado. Não que estar dormindo aliviasse de alguma maneira seu sofrimento. Pelo contrário. Seus pesadelos disputavam com seus dias quem seria capaz de derrubá-lo definitivamente. Ele apenas aguardava a resolução da disputa, apenas mais um espectador. Era seu único conforto pensar que a decisão não era responsabilidade sua. Não mais.
A água gelada bateu em seu rosto, e ele abriu os olhos ardidos para descobrir que sonhava. Ainda estava na cama a olhar para o teto. Contou as rachaduras. Encontrou trinta e cinco, e o despertador já tocava há vinte e nove minutos. Para que levantar? Não valia à pena! Logo descobriria-se em mais um pesadelo, deitado na mesma cama, a contar as mesmas rachaduras.
Um cheiro forte de gordura frita invadiu suas narinas, vindo da rua abaixo. A rua suja em que morava escondia muitos segredos em suas vielas, muitas pessoas boas, ouviu dizer – mas nunca as viu. Só encontrara pessoas ruins, à espera de apenas uma oportunidade para agredir umas às outras, roubarem umas às outras ou violentarem mais uma menina. Era triste, mas o cheiro gorduroso o convenceu de que estava acordado, e a náusea o convenceu a levantar. Com um esforço descomunal (ou assim pareceu-lhe, mas não mais quando já havia levantado) levantou-se e foi ao banheiro lavar-se. No espelho contou suas rugas e notou o quanto a barba por fazer lhe envelhecia a face. Era novo: vinte e nove anos. No espelho, o reflexo era de um senhor de cinqüenta. Não, sessenta.
Podia ser ele? Como havia chegado àquele estado?
Colocou de lado esses pensamentos enquanto aprontou-se para ir ao trabalho. A camisa havia guardado em sua memória o cheiro forte de bebida, do bar em que havia parado na noite anterior. Para que lavá-la? Não era necessário, ainda não estava manchada. A calça lhe pareceu apertada, e ele amaldiçoou a lavadeira que a havia encolhido – ou seria sua própria barriga que havia crescido? Não percebeu. Ou percebeu mas não quis ver. De qualquer modo, sentou-se e colocou suas meias, cada qual com seu furo mas cheirando a mofo em uníssono. Seus sapatos, no entanto, estavam impecáveis. Bem cuidados, novos, lustrados, perfeitos: ainda com cheiro de couro. Deixou que o cheiro preenchesse seus pulmões, fechou os olhos para saboreá-lo ao máximo. E quando os abriu novamente descobriu-se ainda deitado na cama, olhando para as rachaduras no teto, com o despertador tocando desesperadamente há exatamente trinta e cinco minutos. Ele riu, sem mexer o rosto. Ainda estava deitado. E lá estavam as rachaduras - contou-as vinte e duas. Não sairia da cama aquele dia. Para que?
Não valia à pena.
4 comentários:
Belo texto rapaz. Muito bem feito.
Uau.
100 Comentários :)
bjs
Tem dias que são assim, não valem a pena... belo post! :)
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