26/10/2015

O Quilão

Mudei de emprego há pouco tempo pra essa região mais nobre de SP, e já nos primeiros dias percebi que não ia poder depender do vale-refeição o mês todo indo aos restaurantes que meus novos colegas frequentam: em cada saída, gastei quase o dobro do valor diário. Não tem como.

Eu dependo desse dinheirinho, assim como do salário calculado na casa dos centavos. Meu sonho é sobrar uns trocados no fim do mês pra poder levar a namorada pra jantar no Habib's ou, quem sabe, no Mac. Eu tinha que fazer alguma coisa, então dispensei a companhia dos colegas e fui à caça de algum restaurante na região que coubesse no meu orçamento.

Caminhei quadras e mais quadras, saindo daqui da região que já me levaram, tudo restaurante caro e chique demais pro meu gosto, e entrei nas ruazinhas pequenas que achei que iam ter opções melhores. Mas bastava eu olhar pra saber que ainda não era o que eu buscava: ou os frequentadores ou a plaquinha com os valores do quilo na porta. Ainda muito caro. Mas não desisti: caminhei firme, de olho no relógio pra garantir que eu não ultrapassasse meu horário de almoço. Após caminhar por quase meia hora, desisti: não tinha mais tempo de voltar se não encontrasse imediatamente algum lugar pra comer. Medi as opções: o restaurante na minha frente continuava muito acima do ideal. Eu tinha passado um com preço melhor, talvez se eu voltasse uma quadra ou duas...

Então eu vi. Quase que escondido entre casas residenciais, não era mais que um corredor com uma pequena placa, mas o valor da refeição brilhava, pra mim, como um sinal de neon digno de Las Vegas: 

"Coma à vontade
Homens, R$ 17,90
Mulheres, R$ 16,90."

Ah, não pensei duas vezes e entrei quase correndo pelo corredor, calculando na cabeça quanto tempo eu tinha, quanto tempo de atraso seria tolerado, até que desculpa eu daria. "Me perder num bairro novo é normal", pensei, buscando um certo consolo. A porta de madeira, pintada de branco e quase completamente descascada, não foi muito animadora, mas já havia comido em lugares muito piores, não me intimidou. Fui direto pra fila, até que reparei que não tinha quase mais nada no buffet. Mas era estranho demais, porque olhei no relógio e ainda era 12:32. Olhei as mesas: o restaurante tava absolutamente lotado. Gente de todo tipo disputava as mesas em animadas conversas. Não encontrei ninguém pra me atender, pra perguntar quando iriam repor o buffet. Resolvi esperar, não devia demorar muito, né? Com o prato na mão, fiquei procurando qualquer sinal de comida.

Mas não encontrei nada.

Foi quando meu estômago roncou e me distraiu que reparei em novos clientes entrando. Eles nem me viram. Fiquei acompanhando com o olhar: passaram direto pelo buffet vazio e se enfiaram pra dentro do restaurante, subindo a escada. Não entendi muito bem: geralmente as pessoas fazem isso pra "garantir mesa" antes de se servirem, mas não tinha o que se servir... Subi meio desconfiado até o lugar que perdi eles de vista, mas não achei mais. Esperei, procurei, estudei o ambiente daquele restaurante tão esquisito - pela primeira vez, percebi que os pelos da minha nuca tavam tudo arrepiado. Resolvi tentar a porta na direita, único lugar que eles podiam ter ido. Tava destrancada, e na hora senti o cheiro delicioso de comida. Logo vi o buffet que tinha ali dentro, um segundo buffet, e esse tava cheio de comida! Problema resolvido, corri pra lá com tanta fome que eu ia fazer valer os R$ 17,90, sem dúvida alguma! Comecei a me servir de salada, mas o cheiro delicioso que vinha ali da frente me abriu o apetite. Queria era o que tinha ali, e me servi muito do ensopado que parecia delicioso, com batata, aipim e cenoura. Fui feliz pro caixa, já procurando mesa pra sentar, comer correndo e voltar pro trabalho. A caixa, uma menina loira sorridente, olhou pro prato e perguntou: "Homem ou mulher?" Achei que era uma coisa desse povo muito moderninho, claro que sou homem, pô. Respondi pra ela, paguei os R$ 17,90, e fui procurar uma mesa. Estava muito lotado, demorei pra encontrar - e fui percebendo mais uma coisa estranha... todo mundo que eu via tinha uma tatuagem igual, pequena, na nuca - quase atrás da orelha. Não consegui ver o que era, mas como nessa região tem muita agência de propaganda, achei que é uma dessas coisas da moda. Achei uma mesa e comecei a comer. A salada estava boa, comi de uma garfada de tanta fome e porque queria comer mesmo era o ensopado cheiroso. Aos poucos me dei conta de que estava todo mundo olhando pra mim. O único desacompanhado. A caixa sussurrava algo prum engravatado, que devia ser o gerente. Resolvi comer logo, não queria encrenca. Dei a primeira mordida, o molho estava muito bom. Achei a carne com uma textura diferente, não sei, mas queria comer rápido porque aquilo tudo estava bizarro demais pro meu gosto. Devorei as batatas. Aí olhei pro prato. Sem as batatas na frente, pude ver melhor a carne. Não acreditei nos meus olhos. Você também não vai acreditar: ali, boiando no caldo, não dava pra confundir: uma orelha de gente, que eu já tinha cortado um pedaço. Afastei com o garfo umas cenouras e achei um olho. Um dedo. Uma língua. Olhei em volta, e estava todo mundo me encarando. Os pratos delas também tinham pedaço de gente! Algumas pessoas já estavam em pé, e vi que estavam me cercando. Eu tinha que sair dali. Por onde?

Mais pessoas levantaram. Da cozinha, saiu um garçom e um moço grandão que acho que era o chef, com um facão na mão. Aí que me liguei, não queriam só me pegar: se eu não saísse dali na hora, eu provavelmente viraria o prato principal. A pergunta da caixa finalmente fez sentido, e a placa também: "Coma à vontade homens", mas não iam me comer não. Joguei o prato na cara de um lá e saí correndo, pulando de mesa em mesa, por cima das pessoas, e todo mundo querendo me pegar. Fui empurrando e tentando correr, mas não tinha como chegar na escada pra descer e voltar pro corredor e pra rua. Mas tinha uma janela. "É por ali mesmo", pensei. Corri e me joguei com tudo, quebrou a janela e caí no telhado da garagem do vizinho. Dei muita sorte de não me cortar, só sujou a roupa. Mal caí e já vi que eles estavam tudo vindo atrás, levantei correndo e pulei pra rua. Alguns me seguiram até o fim do quarteirão, aí desistiram. E eu não parei de correr até chegar de volta aqui na empresa, nem olhei pra trás mais.

"E foi por isso que atrasei do almoço, chefe. Juro por tudo que é mais sagrado. Quase não escapo com vida!"

Dona Paula olhou pra mim com um sorriso sarcástico no canto da boca.

"Gustavo, por favor, que história ridícula!", gargalhou. "Que esse atraso não se repita e muito menos ficar se justificando com mentiras e fantasias. Acabamos de te contratar, vimos tanto potencial em você... Assuma a responsabilidade por seus atos - e espero não ter essa conversa novamente."

Aí ela virou as costas e voltou pra sala dela. Eu podia jurar que, quando ela virou, eu tinha visto em sua nuca uma pequena tatuagem, logo coberta pelos cabelos negros esvoaçantes. Mas nunca tive certeza.

E rezo todos os dias pra nunca ter.
 

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